Reflexões sobre a gravidez prolongada

Algumas reflexões para deixar a gestante informada e mais tranquila em relação a gravidez prolongada

Fiquei preocupada com a publicação do artigo “Os riscos de uma gestação prolongada” no Guia do Bebê, especialmente porque sou colunista deste site e sempre acompanho com interesse as matérias sobre Gravidez e Parto, em geral ricas e bastante elucidativas para o público geral. No entanto, o artigo em tela foge à tradição já estabelecida pelo Guia do Bebê, trazendo diversas informações que não são respaldadas por evidências científicas sólidas e que, em vez de esclarecer, podem assustar as gestantes.

É certo que as gravidezes realmente prolongadas (além das 42 semanas) são relativamente raras, porque em muitos casos ocorre um erro na determinação da idade gestacional, porque a data da última menstruação não está correta, ou porque houve uma ovulação tardia e a fecundação não ocorreu por volta do 14º dia do ciclo. Justamente por esse motivo, uma política de indução do parto ou, como ocorre com certa frequência em nosso país, de cesariana eletiva depois de 40/41 semanas (ou até antes!) pode promover danos, uma vez que bebês ainda não preparados para nascer podem ser retirados prematuramente do ventre de suas mães.

O excesso de induções ou cesarianas programadas por pós-datismo (gestações que passam da data provável, ou seja, de 40 semanas) tem sido responsabilizado como uma das causas do aumento crescente em todo o mundo do número de bebês chamados “pré-termo tardios” (entre 34 e 36 semanas) ou “termo precoces” (entre 37 e 38 semanas). Esses bebês apresentam risco aumentado de complicações no período neonatal, dentre os quais se destacam os distúrbios respiratórios e a icterícia.

Por outro lado, mesmo gestações realmente prolongadas, datadas corretamente, com idade gestacional confirmada por ultrassonografia precoce, podem ser fisiologicamente prolongadas, porque aquele bebê, especificamente, ainda não está maduro, pronto para nascer, e portanto não se ativa a complexa cascata de eventos hormonais e bioquímicos que leva à deflagração do trabalho de parto. Esses bebês também não se beneficiam de uma política de antecipação do parto, quer por indução quer por cesariana, como ocorre aqui no Brasil, onde infelizmente “antecipar o parto” virou sinônimo de cesariana eletiva.

O maior temor de uma gestação prolongada é que, com o passar do tempo, possa ocorrer insuficiência placentária, com redução do aporte de nutrientes e oxigênio para o bebê, o que pode acarretar sofrimento fetal e aumento da mortalidade perinatal. No entanto, a eliminação de mecônio não significa necessariamente sofrimento fetal, sendo um achado comum nas gestações a termo e pós-termo, em que decorre da maturidade intestinal do bebê. O problema é que, em alguns casos com insuficiência placentária, ocorrendo eliminação do mecônio por aumento do peristaltismo intestinal e relaxamento do esfíncter anal do bebê, na presença de líquido amniótico reduzido e de baixas reservas fetais de oxigênio, pode acontecer aspiração intrauterina de mecônio. Em casos mais graves, pode acontecer a morte fetal ou neonatal.

Como distinguir gestações fisiologicamente prolongadas de gestações complicadas por insuficiência placentária? Avaliando-se a vitalidade fetal através de ultrassonografia e cardiotocografia, porque ao contrário do que sugere o artigo do Guia do Bebê, a dopplervelocimetria não tem ainda um papel bem definido no acompanhamento das gestações que ultrapassam 40, 41 ou 42 semanas. Aliás, o ponto de corte a partir do qual se deve iniciar a monitorização da vitalidade fetal em gestações pós-data não está bem estabelecido.

A mais recente revisão sistemática da Biblioteca Cochrane incluiu 19 ensaios clínicos randomizados (ECR) e 7984 mulheres, randomizadas para indução do parto a partir de 41 semanas ou para aguardar o trabalho de parto espontâneo. Embora tenha sido observado menor risco de morte perinatal e de aspiração de mecônio no grupo submetido à indução do parto, o risco absoluto de morte perinatal foi extremamente baixo, 0,03% vs 0,3%, respectivamente. A conclusão dos revisores é que as gestantes sejam informadas sobre risco relativo (RR=0,30, ou seja, uma redução de 70% quando se induz o parto) e risco absoluto, para que possam participar ativamente do processo de tomada de decisão. Essa discussão deve envolver prós e contras de uma conduta ativa (indução do parto) ou expectante, para que a escolha seja livre, informada e consciente.

Algumas mulheres não querem ser submetidas a protocolos de indução do parto e irão ficar mais satisfeitas aguardando o trabalho de parto espontâneo, porque veem o parto como um processo fisiológico e desejam que este seja o mais natural possível; outras irão preferir uma indução, pelo receio de um risco relativo maior de morte perinatal e aspiração meconial. Esta é uma decisão que só a gestante pode tomar, e que deve ser considerada por todo mundo que escreve e pesquisa sobre gravidez prolongada. Na prática clínica diária, obstetras, enfermeiras-obstetras e obstetrizes devem esclarecer às mulheres sobre riscos e benefícios envolvendo a decisão, e programando estratégias de monitorização do bem estar fetal quando se opta por conduta expectante.

Infelizmente, no Brasil, esse dilema tem se tornado muito raro, porque é comum atribuir-se um “prazo de validade” para a gravidez, e pouquíssimas mulheres chegam à 41a. semana: no país dos 52% de cesárea, a gestação é amputada muito mais precocemente, através de cesarianas eletivas programadas antes mesmo que seja atingida a 40a. semana. Qualquer matéria sobre gravidez prolongada deveria considerar essa triste peculiaridade de nosso país.

Leia aqui a revisão sistemática da Cochrane:
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/14651858.CD004945.pub2/abstract

A versão integral pode ser consultada na BIREME:
http://cochrane.bvsalud.org/portal/php/index.php

continue lendo: → Gravidez prolongada: o que dizem as evidências atuais

exame de ultrassom na mulher grávida - foto: jess lis jess lis/FreeImages.com

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