Boi da cara preta – A magia das cantigas de ninar e dos contos de fadas

Será que está certo banir as cantigas e contos infantis politicamente “incorretas” do repertório de nossas crianças?

As preocupações diversas, que permeiam o mundo contemporâneo, são autênticas e fazem com que nós, adultos, possamos refletir a cerca do planeta, dos humanos, do ambiente e de muitas outras apreensões que não faziam parte do repertório das conversas escolares e familiares há algumas poucas décadas.

Será que os contos de fadas e canções de ninar com bruxas, duendes, monstros, seres fantásticos e assustadores e, de acordo com o que alguns acreditam, “politicamente incorretas” devem ser banidas do repertório infantil?

A resposta é não. Essas criaturas e outros elementos presentes nos acalantos e nas histórias de criança fazem parte do imaginário infantil e, dificilmente, serão desencadeadores de fobias ou traumas. Os bebês ainda não atribuem significado às letras das canções. Elas existem em todas as culturas e vão desde um “dum dum dum” até letras monótonas cujo intuito é levar o bebê a adormecer. O que está em jogo neste momento é o aconchego, o vínculo afetivo e o tom de voz de quem está cantando, contando uma história ou brincando com parlendas.

Menina lendo um livro de onde saem estrelas iluminando o ambiente com magia - Valeriy Lebedev / ShutterStock

A dicotomia entre o bem e o mal, o feio e o bonito, o certo e o errado, estão presentes na maioria das canções e contos infantis, e é importante para a formação de opinião sobre estes conceitos, aprendendo a lidar com os conflitos. A onda do “politicamente correto” veio com tudo para defender, de maneira louvável, valores. Por outro lado isenta as crianças de fazerem seus próprios juízos de valores e assim se apresenta a eles um lindo caminho de rosas, colorido e perfumado totalmente deturpado e mitômano. Adultos, nas melhores das intenções, buscam evitar que as crianças tenham contato com o mal e que se frustrem.

Não se pode atirar o pau no gato, bruxas nunca mais, lobos maus nem pensar. Por meio dessas histórias, parlendas e canções as crianças vivenciam, resolvem seus conflitos e identificam suas emoções. O mundo infantil tem sua própria dinâmica que [ainda bem] é bem diferente do mundo adulto.

As crianças costumam se identificar com os papéis dos personagens, vivenciando os valores, e elaborando os seus próprios, através das experiências do seu dia a dia escolar e familiar. Por isso quanto menor a criança, mais vezes pede para ouvir a mesma história. Agindo assim ela está elaborando seus conceitos, refletindo, comparando para somente mais tarde tirar suas próprias conclusões. Quando suas dúvidas forem suficientemente trabalhadas e suas soluções interiorizadas, o juízo de valor passa a ser validado e então é hora de passar a outra história que será também repetida inúmeras vezes até que esse processo se conclua novamente, em um incessante jogo simbólico.

A fobia por determinado personagem, confundindo ficção com realidade, só ocorre quando são utilizados pelos adultos para ameaçá-las em troca de bom comportamento. Dizer que o bicho-papão ou o homem do saco virá buscá-la é sim uma ameaça muito grande para a criança, o que poderá fazer com que ela desenvolva sérios distúrbios. Isso poderá ocorrer independentemente de histórias e canções, mas sim através de ações dos adultos, que não pensam nas consequências que um ato como esse pode causar. Ou será que ao brincar de “serra, serra, serrador” alguém acha realmente que a criança irá visualizar o papo do vovô sendo serrado e o vovô caindo no chão em uma poça de sangue? Claro que não!

O medo é natural e serve como uma proteção contra situações de risco. Na infância, a criança passa por diversas fases, nas quais este sentimento se manifesta de formas diferentes, em circunstâncias reais ou imaginárias. A questão é identificar quando ele se transforma em fobia.

Ao se falar em “politicamente correto” os adultos deveriam preocupar-se com a forma como vestem seus filhos, com os programas de TV que assistem e com os sites pelos quais navegam e com as ações “adultizadas” que realizam e são alegremente aprovadas e legitimadas pela família. Não é adequado, nem normal, por exemplo, achar lindo uma criança de três anos namorar e dar presentes no dia dos namorados, ou ainda uma criança de dois anos ir à escola de tamanco de salto alto e microssaia. Estas sim situações inadequadas e que colocam as crianças em contato com riscos reais. Desta forma a criança não terá clareza sobre quais valores são reconhecidos e valorizados pelos adultos que a cercam e acreditará

Por isso, cantem para seus filhos e alunos, contem histórias para eles, brinquem de “serra serra serrador” e aproveitem esses momentos de intimidade e cumplicidade que são de fundamental importância para um desenvolvimento pleno e saudável para qualquer criança.

Karen Kaufmann Sacchetto

Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento;Especialista em Distúrbios de Aprendizagem;Psicopedagoga;Pedagoga;Consultoria pedagógica e Tutoria ed...

Veja o perfil completo.

Deixe um comentário