Sistema hormonal do parto

O perfeito e delicado sistema hormonal do parto

Como o corpo produz tudo o que é necessário para que o parto seja um evento seguro, e as consequências das interferências nesse processo

É bem sabido que a vida na terra é composta de uma rede que interconecta todos os seres, onde um depende do outro para que o todo subsista. A própria natureza cria sistemas de auto-regulação que favorecem a vida. É como se fosse do próprio “interesse” do todo manter a reprodução dos seres vivos.

Assim, é inato a cada fêmea do reino animal – como a cada mulher – um sistema reprodutivo perfeitamente organizado para a manutenção da espécie e para que gerar, gestar, e parir sejam experiências seguras para a mulher. Num parto sem perturbações, o próprio organismo humano se ocupa de produzir analgésicos (beta-endorfinas) que aliviam as dores do parto, ou de atingir um pico de ocitocina que previne hemorragia pós-parto, por exemplo.

Mesmo sem receber informações sobre o que deve ser feito, sem ser “educado” para o parto, o corpo feminino será capaz de realizá-lo, da mesma maneira como realiza qualquer outra função fisiológica sem que haja necessidade de um comando racional para acionar esse mecanismo.

Mulher sendo amparada no trabalho de parto - foto: Tyler Olson/ShutterStock.com

O parto é um evento fisiológico

Em seus seminários, o obstetra francês Michel Odent lança sempre a pergunta: “qual é a parte mais ativa em uma mulher em trabalho de parto?” – o cérebro. É ele que comanda todas as contrações uterinas, a intensidade com que acontecem, o ritmo do trabalho; é o cérebro que acionará e liberará no organismo da mulher hormônios que vão além do nascimento em si, agindo na transformação da mulher (e todas as outras fêmeas) em uma mãe. Alguns hormônios atuam não apenas no nível físico, mas também no nível comportamental e emocional, como a prolactina, que ativa o instinto materno, ou as beta-endorfinas que criarão o laço de dependência e cuidado entre mãe e filho¹.

Há milhares de anos esse mecanismo fisiológico tem permitido que a espécie humana se perpetue. As intervenções médicas nesse processo, contudo, têm acarretado partos difíceis, traumáticos, e com sequelas comportamentais e emocionais, que se mostram seja nas mulheres com depressão pós-parto ou sentindo-se incapazes de cuidarem de seus filhos, seja na instituição de uma sociedade mais violenta, devido aos seus “novos integrantes” não terem recebido doses de hormônios previstos pelo cérebro.²

Hormônios sintéticos (utilizados para induzir e/ou acelerar o trabalho), analgésicos, epidurais, ou mesmo condições externas como luz forte, por exemplo, podem interferir nessa rede hormonal e interromper o encadeamento fisiológico e a seqüência do trabalho. Hormônios sintéticos causam efeitos físicos em determinada parte do corpo, mas não atuam no comportamento como os hormônios produzidos pelo próprio cérebro, além de possuírem uma ação isolada, não sendo regulados de acordo com o que está acontecendo no resto do corpo da mãe e do bebê.

Hormônios naturais x Hormônios Sintéticos

Quando é ministrada ocitocina sintética a uma mulher durante o trabalho de parto, o número de receptores de ocitocina no útero é reduzido pelo corpo para prevenir uma estimulação em excesso.³ Isso significa que a mulher tem maiores riscos de hemorragia pós-parto, pois sua própria liberação de ocitocina, crítica nesse momento para contrair o útero e prevenir a hemorragia, será inútil devido ao baixo número de receptores.

A ocitocina materna atravessa a placenta e entra no cérebro do bebê durante o trabalho, agindo para proteger as células cerebrais fetais “desligando-as”, e diminuindo o consumo de oxigênio em um momento em que os níveis de oxigênio disponíveis para o feto são naturalmente baixos4. A ocitocina sintética, porém, não tem a capacidade de atravessar a parede placentária, e não atingirá o organismo do bebê.

Outro efeito da ocitocina sintética é que as contrações produzidas por ela podem acontecer muito próximas umas das outras, impedindo que o bebê se recupere da pressão sofrida pelo útero. Em condições normais, o cérebro da mãe libera a ocitocina por meio de pulsações, e como os dois organismos – mãe e bebê – estão em comunicação durante o trabalho de parto por meio do fluxo sanguíneo comum, o cérebro conseguirá “ler” o nível de catecolaminas liberada na corrente sanguínea pelo bebê, regulando a intensidade e o ritmo das contrações de acordo com o nível de estresse vivido pelo bebê e pela mãe.

Os níveis de todos os hormônios presentes no momento do parto são regulados de acordo com o andamento do trabalho e do estado físico em que se encontra a mãe e o bebê. A alteração de um só elemento desestrutura toda essa delicada rede, cujas conseqüências se estendem para o pós-parto, o aleitamento e a relação emocional entre mãe e filho. Nos momentos finais da preparação do bebê para o nascimento, os hormônios atuam para amadurecer os pulmões e regular o sistema termogênico (regulação térmica) do recém-nascido.

Os danos causados por interferências no sistema hormonal do parto

Durante o período pré-natal, o cérebro do bebê está mais vulnerável a danos irreversíveis5 e estudos indicam que substâncias ministradas por volta da hora do parto, mesmo em pequenas doses, podem causar efeitos colaterais na estrutura do cérebro e na química do recém-nascido que talvez não sejam claros até a idade adulta.6

Os medicamentos ministrados à mãe entram imediatamente na corrente sanguínea e vão igualmente ao bebê, e alguns desses medicamentos serão absorvidos preferencialmente pelo seu cérebro7. A meia-vida das substâncias ministradas (ou seja, o tempo que se leva para reduzir em 50% o nível do medicamento da corrente sanguínea) é muito maior no organismo do bebê após o corte do cordão umbilical. A buvicaína, por exemplo (medicamento derivado da cocaína, usado como anestésico local), tem uma meia-vida de 2,7 horas no organismo adulto, mas cerca 8 horas em um bebê recém-nascido.8

Os medicamentos utilizados em procedimentos de rotina nos partos continuam agindo no corpo da mãe e do bebê por horas após o parto, fazendo com que a mãe esteja sedada no momento de seu primeiro encontro com seu filho, e que o bebê nasça sob efeito dessas drogas, o que causa um imprinting químico no seu cérebro. As conseqüências desse fenômeno poderão ser percebidas na vida adulta como tendência física em reviver tal sensação experienciada no parto, causada por essas substâncias anestésicas. O imprinting previsto pela natureza para o cérebro do bebê neste momento seria aquele realizado pela ocitocina produzida pelo cérebro da mãe e do bebê durante um trabalho de parto sem interferências.

Para que o trabalho e o parto aconteçam de forma ideal, algumas medidas simples podem ser tomadas, que permitem que o sistema límbico (parte primitiva do cérebro, comum a todos os mamíferos) faça o trabalho de produção dos hormônios necessários ao parto e ao imprinting no cérebro da mãe e do bebê. O neo-cortex humano – a parte mais racional e moderna do cérebro, que quando em ação impede o perfeito funcionamento dos comandos do sistema límbico, que comanda as funções fisiológicas previstas para o parto9 – é estimulado por luzes fortes, pela construção de um raciocínio por meio da linguagem, pelo frio (libera adrenalina), e pela sensação de estar em risco. Evitar todos esses fatores é a condição básica para que o parto seja facilitado, e que o corpo coloque em ação o modelo fisiológico previsto para um parto seguro e prazeroso.

por Letícia Koehler

Referências:

1. Pesquisa realizada na França sobre o efeito das epidurais em animais mostrou que as ovelhas em que foram injetadas epidural não tiveram um comportamento materno normal após o nascimento dos filhotes; o efeito foi mais fortemente marcado pelas ovelhas que receberam a droga no início do trabalho: sete entre oito dessas mães não mostraram interesse por seus filhotes por ao menos 30 minutos.1A Os pesquisadores analisaram baixos níveis de ocitocina no cérebro dessas ovelhas e também demonstraram uma reversão parcial dos efeitos do comportamento maternal quando a ocitocina foi ministrada no cérebro dessas recém-mães.1B A)Krehbiel D, Poindron P, Levy F, Prud”Homme MJ. Peridural anesthesia disturbs maternal behavior in primiparous and multiparous parturient ewes. Physiol Behav. 1987;40(4):463-472. B) Levy F, Kendrick KM, Keverne EB, Piketty V, Poindron P. Intracerebral oxytocin is important for the onset of maternal behavior in inexperienced ewes delivered under peridural anesthesia. Behav Neurosci. Apr 1992;106(2):427-432.

2. O obstetra francês Michel Odent realizou diversos estudos sobre o tema. A vasta bibliografia do autor disponibiliza mais informações, principalmente a obra The Scientification of Love. Revised ed. London: Free Association Books; 2001.

3. Phaneuf S, Rodriguez Linares B, TambyRaja RL, MacKenzie IZ, Lopez Bernal A. Loss of myometrial oxytocin receptors during oxytocin-induced and oxytocin-augmented labour. J Reprod Fertil. Sep 2000;120(1):91-97.

4. Tyzio R, Cossart R, Khalilov I, et al. Maternal oxytocin triggers a transient inhibitory switch in GABA signaling in the fetal brain during delivery. Science. Dec 15 2006;314(5806):1788-1792.

5. Mirmiran M, Swaab D. Effects of perinatal medication on the developing brain. In: Nijhuis J, ed. Fetal behaviour. Oxford: Oxford University Press; 1992.

6. Nyberg K, Buka SL, Lipsitt LP. Perinatal medication as a potential risk factor for adult drug abuse in a North American cohort. Epidemiology. Nov 2000;11(6):715-716 e Csaba G, Tekes K. Is the brain hormonally imprintable? Brain Dev. Oct 2005;27(7):465-471.

7. Hale T. The effects on breastfeeding women of anaesthetic medications used during labour. Paper presented at: The Passage to Motherhood, 1998; Brisbane Australia.

8. Hale T. Medications and Mother”s Milk. Amarillo TX: Pharmasoft; 1997.

9. Veja também o texto As necessidades básicas da parturiente:http://www.guiadobebe.com.br/as-necessidades-basicas-da-parturiente/

Letícia Koehler é jornalista free-lancer, atuando na área humana, ambiental e de culturas nativas. Desde 2000 está envolvida com o tema do parto natural e humanizado. leticialk@hotmail.com

Este texto foi baseado no artigo Ecstatic Birth – Nature’s Hormonal Blueprint for Labor de Sarah Buckley. As referências bibliográficas (com exceção da n. 2 e 9) também foram retiradas dos texto original de Dra Buckley. Para ter acesso ao artigo de Sarah, visite o site www.sarahbuckley.com (original em inglês), ouwww.partodoprincipio.com.br(versão em português).

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